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Fragilidade dos reguladores - entrevista Aurélio Valporto

Duramente criticados pela juíza Rosália Monteiro, CVM e B3 têm suas falhas escrutinadas nesta entrevista.

ABRADIN
ABRADIN
13/07/2020

Petrobras

  Na condenação do réu Eike Batista a oito anos de prisão por manipulação de mercado, a juíza Rosália Monteiro Figueiredo, da Justiça Federal do Rio de Janeiro, fez duras críticas à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia reguladora do mercado de capitais, bem como à B3, que também atua como auto-reguladora do mercado.

   O cerne das críticas da juíza gira em torno dos dispositivos legais que determinam a suspensão da negociação de ações de uma companhia aberta quando houver suspeitas de divulgação de informações falsas ou incompletas por parte da empresa, o que teria aconteceu no caso da OGX a partir de 2008.

  O artigo 60 da Instrução Normativa CVM 461, por exemplo, dispõe acerca da   suspensão da negociação de ações quando tornarem-se públicas notícias vagas ou incompletas sobre a situação da companhia, que possam vir a influir de maneira relevante na cotação de uma ação ou induzir os investidores a erro. A B3, inclusive, regulamentou o dispositivo em seu regulamento de negociações. Em razão disso a B3 e a CVM deveriam, naquele momento, ter utilizado a norma e suspendido a negociação das ações e evitado o prejuízo de milhões de investidores que teriam acreditado nas informações divulgadas pela OGX.

O que lamentavelmente não se verificou no presente caso, por ineficiência dos órgãos competentes do setor, evidenciada pela falta de cautela na fiscalização, que fez o público investidor acreditar erroneamente que os dados divulgados pela companhia ao mercado teriam sido devidamente checados pelas autoridades competentes e, assim, seriam plenamente confiáveis”, criticou a juíza.

 Na decisão, a atuação da autarquia brasileira foi comparada à da Securities and Exchange Commission (SEC), órgão regulador do mercado de capitais nos EUA. Para a magistrada, ao contrário da CVM, a SEC é “proativa no combate à manipulação de mercado, com regras rígidas que inviabilizam que companhias divulguem ao mercado de valores mobiliários notícias baseadas em dados artificiais, sem qualquer embasamento concreto”.

 Com mais de 30 anos de experiência no mercado de capitais, o economista Aurélio Valporto, presidente da ABRADIN, elogiou a decisão. Na entrevista que se segue escrutina os dipsositivos legais e a atuação dos reguladores no caso. 

 ABRADIN: Para começar, gostaria de uma análise sua sobre o dispositivo citado pela juíza. É possível suspender a ação de empresas na bolsa com base em informações falsas?

VALPORTOO artigo 60 da ICVM 461 é muito claro, por isso não deixa dúvidas. Não só é possível como o legislador  criou este dispositivo para proteger o investidor e manter a higidez do mercado. O argumento de que a suspensão das operações pode prejudicar aquele que detém as ações naquele momento, porque impede que ele se desfaça da posição, é de uma indigência intelectual tão grande que merece piedade. Vamos supor que seja divulgada uma notícia que seja falsa e tenha o viés de alta na cotação, neste caso a suspensão da negociação, até que se esclareça o fato, impedirá que o detentor das ações as venda tendo um ganho ilegítimo, ainda que involuntário, e que aquele que compraria acreditando na falsa divulgação tenha prejuízo causado pela manipulação da notícia que induziu a erro seu método de precificação do ativo. Por outro lado, se a falsa notícia tiver o viés de baixa, o detentor das ações poderia vendê-las com um prejuízo indevido e aquele que as comprasse teria um lucro igualmente ilegítimo, uma vez que quando o fato fosse esclarecido a cotação tenderia a subir para o patamar anterior. Portanto, em quaisquer dos casos a paralização evitaria ganhos e prejuízos ilegítimos, mantendo a higidez do mercado e evitando a indução de investidor a erro, frustrando seus modelos de precificação.  Cabe salientar aqui que "indução de investidor a erro" é crime capitulado no artigo 6° da lei 7.492, a lei do colarinho branco, que a meu ver foi esquecida na sentença, o que poderia resultar em pena maior para os réus. 

 Vamos aos fatos concretos da sentença, mas antes, reprisemos o dispositivo legal definido no inciso II do parágrafo 1º do art. 60 da ICVM 461: " tornar-se pública notícia ou informação vaga, incompleta ou que suscite dúvida quanto ao seu teor ou procedência, que possa vir a influir de maneira relevante na cotação do valor mobiliário ou induzir os investidores a erro".  Assim, quando o réu Eike Batista afirmou em entrevista que a OGX tinha 1 trilhão de dólares de petróleo em águas rasas apenas no sul da Bacia de Campos, e esta divulgação não foi corroborada por fato relevante, caberia aos reguladores suspenderem imediatamente a negociação, chamando assim a atenção dos investidores para a dúvida quanto à veracidade da notícia, pedindo maiores esclarecimentos para o RI da cia, que deveria fazê-lo através de comunicado ao mercado. Outro exemplo ocorreu quando a OGX divulgou fato relevante informando que a certificadora D&M havia certificado a existência de 11 bilhões de barris mas a empresa sequer apresentou tal certificado. Posteriomente descobriu-se que tal certificação jamais existiu e que a própria certificadora havia exigido de Eike um desmentido, que nunca ocorreu. Outro caso foi quando Eike anunciou, em dia de vencimento de opções, a descoberta no pré-sal de Santos de 2 bilhões de barris, foi isso que impactou o mercado, mas o fato relevante emitido pela cia falava apenas em indícios de petróleo. Na verdade não havia uma gota. Repare que, em quaisquer desses casos, ao contrário do que algumas opiniões dizem, não é necessário entender absolutamente nada de petróleo, basta atentar para as incongruências entre as informações que estão afetando o mercado e os dados, ou a falta deles, divulgados. Estas incongruências foram mais do que suficientes para seguir a lei material e suspender as negociações, enquanto exigia maiores informações da empresa. Essa suspensão deixaria claro aos investidores que as informações divulgadas estavam incompletas e que, portanto, devem ser vistas com cautela. Ao contrário, por não suspender as negociações, os reguladores passaram para o mercado investidor a informação de que as informações divulgadas atendiam aos preceitos da ICVM 461, ou seja, de que eram completas, não eram vagas e que sequer suscitavam dúvidas quanto ao seu conteúdo. Desta forma a não suspensão fez com que os reguladores (então a Bovespa e a CVM) ratificassem essas divulgações ajudando a induzir os investidores a erro. Portanto,  neste caso, se não houvesse regulador seria melhor para o mercado, uma vez que o investidor olharia com mais desconfiança para as falsas divulgações, e não ficasse observando a atitude dos reguladores, cujas omissões acabaram sendo confundidas com ratificação.

ABRADINMas, naquele momento, era possível saber que as informações eram evidentemente falsas, para determinar uma suspensão tal qual a juíza afirmou?

VALPORTOPara proteger o mercado e os investidores, suspendendo a negociação, não é necessário, e nem deve ser, provar que a notícia seja falsa, basta que ela seja "vaga, incompleta ou que suscite dúvida  quanto ao seu teor ou procedência", conforme estabelecido na ICVM 461.  Todas estas condições estavam presentes nos casos concretos e é por isso que a juíza, muito corretamente, apontou a omissão dos reguladores como fator relevante para que os réus perpetrassem os crimes.

ABRADIN: Desculpe insistir nessa pergunta: naquele período, alguém desconfiava dos fatos relevantes a ponto de determinar uma medida de suspensão das ações em bolsa? 

VALPORTOGuilherme, também vou insistir. Sim, bastava estar atento, como vamos ver ao longo desta minha resposta, mas os "desatentos" reguladores nada viram.  Como vimos na minha resposta anterior os indícios eram sólidos e a própria CVM em sua Nota Explicativa 24 ( http://www.cvm.gov.br/legislacao/notas-explicativas/nota024.html ) saúda a resolução 702 do Banco Central, que deu a ela a missão de suspender as negociações nestes casos, chamados na resolução de “situações anormais” e assim definidos: "“I - Considerar-se-á situação anormal de mercado, para os fins do § 1º do art. 9º da Lei nº 6.385, de 07.12.76, quando, a juízo da Comissão de Valores Mobiliários (CVM):

b) existir dúvida acerca da disponibilidade, pelo público investidor, em tempo hábil e pelos meios apropriados, de informações adequadas para a tomada de decisão de negociar ou reter valores mobiliários de emissão de companhia aberta, ou de exercer quaisquer outros direitos inerentes à condição de titular de tais valores; “

 Então, mais, uma vez, não há que se falar em certeza, bastam apenas dúvidas, e as incongruências apontadas nos casos concretos eram mais do que suficientes para suscitar estas dúvidas, mas não é só isso, a ICVM 480 estabelece que “informações factuais devem ser diferenciadas das opiniões, projeções e estimativas” (art 19). A intenção do legislador foi a de que o investidor saiba, de forma clara e precisa, quando determinada informação se trata de projeção ou se trata de fato. A mesma instrução estabelece ainda (art 20) que “§ 1º Caso o emissor decida divulgar projeções e estimativas, elas devem ser:

...

II - identificadas como dados hipotéticos que não constituem promessa de desempenho;

...

IV – vir acompanhadas das premissas relevantes, parâmetros e metodologia adotados

A OGX e os réus jamais cumpriram com esses requisitos nos casos concretos analisados na ação penal. Como a CVM é obrigada a fiscalizar o cumprimento de sua própria legislação, a cada divulgação, quando não definidas claramente como estimativas, a primeira atitude do investidor é observar o comportamento da autarquia. Se ela nada faz, não suspendendo as negociações até que se esclareça a natureza das informações ou ao menos solicita esclarecimentos adicionais à empresa para se certificar que não se tratam de estimativas, o investidor, sempre atento aos movimentos da CVM, toma aquelas informações como um fato.  Afinal, ao nada fazer, a autarquia sinaliza para o investidor que não existe “dúvida acerca da disponibilidade, pelo público investidor, em tempo hábil e pelos meios apropriados, de informações adequadas para a tomada de decisão”, avalizando assim, que as informações que vieram a público não se tratavam de previsões, mas sim de fatos.

 Como se não bastasse, a ANP declarou no âmbito do processo administrativo sancionador instaurado a posteriori pela CVM - cujo termo de acusação feito pela SEP foi utilizado pela acusação na ação penal - que, durante a campanha exploratória, é “impossível fazer qualquer estimativa de volume recuperável, mesmo com o poço concluído”. Ou seja, diante de tal afirmação a ANP sabia que os réus estavam passando informações falsas ao mercado. A pergunta que fica é: porque a CVM e a ANP não agem em conjunto? Porque somente “depois do “leite derramado” as duas autarquias foram se comunicar? Veja, nem precisa ser como na SEC, em que existem especialistas em inúmeros setores, bastava que as autarquias se comunicassem. Lembro aqui que à época OGX era a terceira ação mais negociada da Bovespa. Sim, naquele momento os indícios de fraudes eram claros, evidentes até, mas a autarquia reguladora falhou miseravelmente, sinalizado para o público investidor justamente o contrário, de que os fatos divulgados eram completos e não suscitavam dúvidas em relação ao seu teor.

ABRADIN: Para finalizar: A juíza disse que a CVM deveria ter ido in loco conferir se havia petróleo. É papel do regulador do mercado fazer isso?

VALPORTO: Repare que a CVM não foi citada textualmente neste trecho, vejamos: "...aproveitaram-se da fragilidade dos órgãos de fiscalização do mercado de capitais e do setor petrolífero brasileiro, que não checaram, especialmente "in loco", a veracidade dos dados e informações apresentadas...". Ao incluir a ANP nesta sentença, para mim fica claro que a responsabilidade de verificar "in loco" seria desta autarquia, e não da CVM. Adicionalmente, quando ela fala em "órgãos de fiscalização do mercado de capitais", a juíza Rosália Monteiro Figueira está se referindo não somente à CVM, mas também à Bovespa. Como sabemos, a Bovespa, como auto-reguladora do mercado, tem a mesma atribuição legal de suspender as negociações, mas, pelo contrário, seu presidente à época, Edemir Pinto, veio à público em entrevista especializada (Isto É Dinheiro) defender o agora condenado Eike Batista. Edemir foi alvo de inquérito aberto pelo MPF para verificar se não agiu em conluio de desígnios com Eike Batista. Pelo que me conta este inquérito ainda está em andamento, sob os auspícios do procurador Anderson Vagner do MPF-SP ( https://veja.abril.com.br/economia/mpf-investigara-presidente-da-bovespa-no-caso-de-venda-de-acoes-da-ogx/ ).